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quinta-feira, 19 de abril de 2012

Dos postais* Ninguém consegue ver seu próprio nariz sem a ajuda de um espelho. É uma ironia grotesca pensar que a parte central do nosso outdoor esteja fora do alcance dos nossos olhos, mesmo estando sempre embaixo deles. Olhamos tanto para o que está distante, que deixamos de enxergar as coisas mais fáceis e simples da vida. Mas você já deve saber disso, não é? Pois bem, então vamos mais fundo. Há algum tempo colecionando cartões-postais tenho conhecido todo tipo de gente e viajado para lugares tão fantásticos que meus pés talvez nunca possam tocar. Mas a cartofilia (nome dado ao ato de colecionar postais) ultrapassa o didatismo ou a mera contemplação de belas paisagens e figuras. Não sei medir a dimensão dos regalos desta atividade, porque receber um postal é mais ou menos como aniversariar muitas vezes, no mesmo ano, com a super vantagem de não mudar de idade. Admito que depois de acumular figuras do mundo todo, fiquei bem mais atento às nossas paisagens e cultura. Mas geralmente, quando mostro os postais de São Paulo a alguns amigos paulistanos, sou interrogado se não houve exagero nas cores ou se teve "mudança de computador" nas fotos, pois ali, aquilo fica muito mais bonito que no original. Claro que há edições nas imagens, mas raramente são feitas alterações nas características básicas dos monumentos. O que quero dizer é que as pessoas tendem a não observar a beleza dos atrativos da própria cidade onde moram ou das coisas que as rodeiam. E não me refiro somente aos principais picos não, pois esta constatação, infelizmente se aplica a diversos outros aspectos. Sempre que vou à Praça da Sé, na região central de São Paulo, fico observando os turistas guardando toda a cidade em suas máquinas fotográficas, nem os mendigos escapam. E fico pensando se os pedintes de lá são diferentes dos daqui ou se são as pessoas que ignoram a existência deles em sua cidade. Talvez, a comida de fora nem seja tão boa quanto a nossa, a população local pode ser descortês e a cidade até feinha. Mas ao viajar, degustamos mais, tratamos melhor as pessoas, qualquer estátua se torna digna de um clique e tendemos a nos interessar por fatos e feitos que nem ligaríamos se não estivéssemos de férias. Turista é criança em excursão de escola no parque de diversões, sempre procurando uma chance de dar uma escapulida, na expectativa de que aconteça algo notável para poder contar em casa. O mestre Sérgio Ifa sempre dizia que passou a compreender e a valorizar mais a nossa língua a partir do momento que foi morar em outro país e teve que lidar com outro idioma. Ainda nesta perspectiva, certa vez um imigrante alemão contou que foi aqui que conheceu a palavra mais bonita que já ouviu, e que, na época, não conseguia parar de repetir: "es-ta-cio-na-men-to, bonito". Tais relatos nunca me saíram da cabeça, como uma prova de que temos uma importância que não nos damos e que a língua materna é um patrimônio ímpar, que já não pode mais ser desdenhado. Não estou recorrendo a um sentimento de narcisismo ou xenofobia, mas ao bom-senso, que exige olharmos à nossa volta e reconhecermos o valor do que nos pertence, o brio da nossa cultura e a generosidade da nossa miscigenação. Não é preciso ir muito longe para conhecer coisas bonitas e grandiosas. Se permita ser turista em casa e construa seus próprios cartões-postais. Não hesite em sacar uma câmera e sair por aí fotografando a vizinhança, um marco ou simplesmente, se encarar na lente. Não seja um estranho de si mesmo, de sua história. Desabotoe os olhos e descubra que não importa o quanto o mundo seja grande: ele começará sempre aqui, na sua frente. *(Extraído do livro Tratado sobre o coração das coisas ditas, de Ni Brisant)

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